quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Profeta do novo mundo prega no deserto das selvas e das cidades




Capítulo 2
                                                Enquanto Neuzim e Joana perambulava por Pernambuco e Bahia com sua música e canto e arte, Nuno e Sanxo viram-se em novos domínios, a vegetação mudara, a floresta era mais espessa, o calor maior. Ouviram barulho de grupo vindo em sentido contrário, ficaram na espreita, vinha gente, observaram, era um grupo de padres e nativos, a frente um padre alto, magro, velho, barba branca, com um gorro preto na cabeça, três índios, uma alimária, cem metros mais atrás um grupo de colonos a cavalo armados de arcabuzes, facas e expressão ruim no rosto. O primeiro grupo parecia ir por certo da capital da província do maranhão provavelmente rumo à serra da ibiapaba, pras bandas do ceará. Velho padre tinha no rosto expressão de abatimento e desânimo. Tiveram que sair às pressas, souberam depois, os colonos hostilizavam os padres que tinham ali chegado com a missão real de combater a escravidão dos nativos.  Acercaram-se do grupo mal os colonos deixaram de segui-los.                                                 - Por quem sois...  
                                               - ...Somos de paz, estamos pra protegê-los nessa caminhada pela mata, padre....      
                                           - Em nome de deus, sejam bem vindos, não conhecemos tão bem essa trilha, não conseguimos embarcar por mar a tempo em segurança, os colonos estão muito hostis, tivemos que sair às pressas,  molestaram os padres que estavam ali com a missão de combater a escravidão dos nativos.         
                                                  - Entendemos, mais adiante conseguiremos embarcação indígena, se quiserem iremos pelo rio onde der, caminharemos onde for possível. Assim fizeram.                                      
                                                  - Que fazem tão jovens colonos por essas ínvias paragens?                   
                                                   - Cá estamos em missão de paz e justiça, não vos preocupeis tanto em saber quem somos, ficai tranqüilos.                                                     - Tranqüilidade é o que não temos nessa ação missionária, caros jovens, estas províncias estão rebeldes às ordens del rei, encontra-se formas vis de burlar a vontade real. Do púlpito onde posso tenho falado a todos mas as consciências estão por demais embotadas, a ganância, a concuspicência, a luxúria, a idolatria do ouro só tem paralelo na saga do povo eleito adorando bezerros argênteos em meio ao deserto dessas selvas, nosso povo, nossa nação tem a missão de desbravar novos rumos, novos horizontes pra essa humanidade tão perdida, nosso jovem rei tão cedo morto não tardará a voltar, está encoberto na alma dos que têm a tarefa de governar nosso povo e nação. Nossa tão querida santa madre igreja se divide em fratricidas questões menores, tenho sofrido perseguições sem conta por defender idéias combatidas pela inquisição a frente os dominicanos, portugal não pode prescindir do capital dos israelitas para a consumação de sua vocação maior, qual seja a de transformar a terra no novo mundo prometido pelos profetas antigos e recentes.                                                        Velho padre delirava de febre e entusiasmo, era visível seu cansaço.
                                                      - Sim, meu filho, nos ajudem no que puderem, preciso descansar um pouco.
                                                        Fizeram acampamento, dormiram. Dia seguinte desfizeram acampamento e prosseguiram viagem. Nuno e Sanxo conheciam a fama de orador do velho padre, acercaram-se de sua montaria para confabularem.                                                       - Os colonos então relutam em aceitar a disposição real sobre a escravidão dos índios?
                                                       - Sim, meus filhos, a ordem real é de que os nativos sejam atraídos por nós religiosos e sejam colaboradores voluntários na tarefa da colonização. Os colonos porém se apressam em apresar os índios que não aceitam isso passivamente. Cria-se o conflito, que tentamos mediar em vão. A ordem real é clara, mas os colonos a ignoram alegando que precisam da mão de obra escrava dos nativos sob pena de comprometer a missão colonizadora. A nossa missão religiosa é a conversão desses gentios em cristãos tementes a deus e súditos fiéis de sua majestade el rei. Os colonos com sua ganância e pressa não aceitam nossa mediação, por isso fomos expulsos dessas terras. Se não saíssemos seríamos mortos.                                                       - Padre, em sã consciência o senhor acredita que a missão colonizadora poderá ser feita sem a escravização dos nativos?                                                                                                                    - Em tese sim, se a missão catequética andar ao lado da missão colonizadora. Os colonos porém não estão dispostos a isso. São homens rudes afeitos a lutas, guerreiros que não distinguem muito bem os adversários de suas empreitadas, querem alcançar seus objetivos a qualquer custo, matando ou prendendo a quem a isso se oponha. Nós religiosos ficamos entre a cruz, a espada e o cetro real. A ação dos corsários é um elemento complicador. Alguns são mais habilidosos no trato com os nativos. A missão colonizadora não pode esquecer que por vontade divina nossa pátria é dona dessas terras e tem que defendê-la da ação corsária. A tolerância real com o apresamento dos índios se justifica pela priorização da defesa da terra descoberta da ação dos piratas. Politicamente se justifica, moralmente não.                                                        - Onde fica o compromisso moral da igreja em face do conflito? A  igreja tem compromissos morais e políticos e tenta ser fiel a eles sem excludências, nem sempre consegue. A igreja é composta por homens falíveis e mortais. A igreja invisível e espiritual paira por sobre a igreja humana e a ela se sobrepõe. E’ o que a mantém viva. Os homens que comandam a igreja ou agem em seu nome  ao longo dos séculos enxergam mais ou menos essa realidade e agem segundo essa visão. Ora estão mais perto ora  mais longe de um ideal de igreja eterna acima das circunstâncias históricas. Nós, pregadores da palavra divina tentamos explicar isso aos ouvintes, nem sempre somos entendidos.           
                                                    - Temos ouvido alguns discursos vosso, padre, e percebemos a dificuldade de serdes entendido e aceito.
                                               - Sim, filhos, mas somos movidos pelo espírito da parábola do mestre, semeamos em terreno árido mas não deixamos de semear, é nossa missão.        
                                                   - E as profecias, padre?  
                                                    - De que profecias falais, jovem? 
                                                     - Fala-se por aí dos problemas que tivestes com respeito a profecias sobre um quinto império que não se sabe bem do que se trata...                                                     - E’ assunto de extrema gravidade e não estais de todo enganado sobre os percalço por que passei por ter chegado às mãos da santa inquisição algo a respeito, mas temo que não deva me referir sobre isso com mentes tão jovem e pouco afeitas por certo a questões tão profundas e complexas...                                                               - Ficai tranqüilo, padre, e não nos faleis sobre isso se não for de vossa vontade...          
                                                      - Falar sobre coisas do futuro é mais difícil que falar de coisas do presente. Temos tido visões do futuro. Futuro de nossa pátria, futuro da humanidade. 
                                             - Acreditais mesmo que nossa pátria tem realmente o futuro brilhante e glorioso que imaginais?
                                                - Sim, por certo, o século passado mostrou a nossa capacidade de levarmos ao resto do mundo o brilho de nossa civilização, nossos corajosos navegantes levaram a palavra de Deus a lugares dantes nunca...  
                                                Sanxo se empertiga em sua montaria, olha para Nuno que lhe pede com o olhar, calma com o velho padre...
                                            - Tenho dificuldades, padre mestre, com todo o respeito, de admitir que essa cultura que é levada junto com a palavra de Deus seja mesmo benéfica para povos como esses que encontramos aqui...
                                                - Ah, meu filho, não seja tolo... Essas almas selvagens na sua aparente inocência precisam da ação catequética para serem salvas do pecado da mancebia, do incesto, da idolatria pagã, da antropofagia...
                                         - Mas padre, será que nossa cultura realmente é superior à desses nativos...   
                                         - Sim, meu filho...
                                         Ouviu-se então estranho alarido vindo da mata espessa. A comitiva fez-se em guarda. Era um bando de nativos, pintados, cantando e dançando em atitude aparentemente hostil, lanças e flechas apontado para os nativos da comitiva. Velho padre interveio dialogando com os guerreiros índios na língua deles. Queriam saber quem eram os dois jovens que acompanhavam a comitiva. Nuno e Sanxo se dirigem aos índios diretamente. Dizem que são amigos dos padres e estão ali para os protegerem em sua viagem. Os índios lhes dizem que os levarão para a aldeia, ordenam que Nuno e Sanxo desçam de suas montarias. Discutem com os padres. Dizem  que todos da comitiva são prisioneiros deles. O grupo segue os índios até à aldeia, lá chegando os índios os recebem em festa, estão se preparando para alguma batalha, ou celebrando algum festival. Nuno, Sanxo, os padres e os índios ficam apreensivos, não entendem porque os índios os fazem prisioneiros. Índios começam a dançar e cantar, arrastam nativos da comitiva e Nuno e Sanxo para o centro do taba, despem Nuno e Sanxo. Pintam seus corpos  com tintas vermelha e preta, cores de guerra. Fazem o mesmo com os índios que acompanham os padres. Poupam os padres do  constrangimento. Cantam, dançam, bebem e comem a noite inteira. Velho padre fora convidado pelo chefe da tribo a dormir em seus aposentos juntos com os outros padres, depois de conversarem até altas horas. Nuno dormiu por ali mesmo, Sanxo foi arrastado por jovem índia pruma moita próxima, depois de se empanturrar de comida e bebida. Dormiu e sonhou sonhos terríveis. No sonho comia feito um desesperado mas  na verdade percebeu que  estava preso numa jaula,  como que engordando para ser comido depois de assado, por certo. O medo bateu. Encontrava-se sozinho no sonho. Pecado, tinha a sensação de pecado. Como se só ele respondesse pela gula e luxúria do mundo. De repente via o velho padre trepado numa árvore pregando grave e solenemente como se estivesse no púlpito de uma igreja. A voz forte e tronitroante do velho padre ecoava floresta a fora como se as trombetas de Jericó fossem.
                                               - “Hoc autem decebant tentantes eum. Que os homens sejam maiores inimigos que os demônios, é verdade que eu tenho muito averiguada. Busque cada um o exemplo em si, e achá-los-á: por agora baste-nos a todos o de Cristo. Depois de trinta anos de retiros, houve Cristo de sair a tratar com os homens, ou a lidar com eles. E porque não basta  ciência sem experiência, nem há vitória sem batalha, nem se peleja bem sem exercício; antes de entrar nesta tão perigosa campanha, quis-se exercitar primeiro com outros inimigos. Parte-se o senhor depois de batizado ao deserto; e diz São Marcos  que estava ali e vivia com as feras. Eratque cum bestiis. Passados assim quarenta dias, seguiram-se as tentações do demônio: Et acendens tentator, tentado Cristo no mesmo deserto, tentado no templo, tentado no monte. E depois destas duas experiências, então finalmente saiu, e apareceu no mundo, e começou a tratar com os homens: Exinde caepit praedicare. Não sei se reparastes  na ordem destes ensaios. Parece primeiro que se havia de exercitar o senhor com os homens,  como racionais e humanos; depois com as feras, irracionais e indômitas; e ultimamente com os demônios, como tão desumanos, tão cruéis  e tão horrendos. Mas não foi assim, senão ao contrário.  Primeiro com as feras, depois com o demônio, e ultimamente com os homens. E por quê? Porque o exercício e o ensaio, há de ser do menor inimigo para o maior: e os homens não só são inimigos mais feros, que as feras, senão mais diabólicos que os mesmos demônios. Vêde na experiência. Que aconteceu a Cristo com as feras, com o demônio, e com os homens? As feras não o comeram; o demônio não o despenhou; os que lhe tiraram a vida foram os homens. Julgai se são piores inimigos que o demônio? Do demônio defendei-vos com a cruz; os homens põem-vos nela”.                                             Velho padre desce da árvore lentamente como se flutuasse no ar protegido por coorte de criaturas celestiais. Sanxo sonha em seguida que viu abrir-se a porta da jaula, sem mais nem porquê. Era noite escura. Não pensou duas vezes, saiu correndo porta a fora rumo a escuridão da mata. Sensação de liberdade que durou pouco. Olhando para trás percebeu onças, raposas, tamanduás, cobras,  cachorros do mato, ganindo de ódio em seus calcanhares, prestes a lhe devorarem, começou a gritar, enquanto corria. Da mata escura surgiu a figura de um cavaleiro alado, era ele, o Cavaleiro do Tempo, num garboso cavalo branco, vestindo roupa e capa de cavaleiro medieval, cruz ao peito. O seu único e grande amigo Nuno. Deus existe e protege os inocentes, ou quase inocentes. O cavaleiro luta bravamente com as feras que perseguiam Sanxo. Mata-as todas com sua espada mágica. Sanxo respira aliviado, grita por Nuno. Ninguém responde. Sumiram todos. Nuno o abandonou, está perdido. Das sombras da trevas aparece a figura de satanás em pessoa, tridente na mãos, aproxima-se dele, ameaçando-o.                                      
                                      - “Vou levar tua alma pra o inferno”.
                                     Sanxo dispara novamente em desabalada carreira, satanás atrás dele. O calor do tridente de satanás esquenta-lhe o traseiro em fuga, morte cruel, desespera-se, pensa, empalado cruelmente por um ferro em brasa pelo maldito em pessoa. Eis senão, novamente aparece o Cavaleiro do Tempo em sua garbosa montaria alada. Trava terrível refrega com satanás. A espada do cavaleiro ferve em contato com o tridente do demônio. Por fim o cavaleiro acerta certeiro golpe no pescoço do tinhoso,  que tomba mortalmente ferido. Sanxo assistiu à luta mortal com o coração na mão. Suava em bicas. Nuno, o cavaleiro do tempo, sumiu tão de repente quanto aparecera. Sanxo exausto desfalece e sonha que sonha. Agora está deitado em confortável cama num aposento riquíssimo e luxuoso  de um palácio talvez, é um príncipe, uma dama lindíssima, vestindo diáfana camisola transparente, adentra o aposento. É Luisa, a irmã de Nuno. Luisa despe-se e entrega-se docemente a Sanxo que a penetra selvagemente entre gritos e gemidos de prazer. Depois do amor Luisa chama um criado com uma sineta de mão. O criado aparece trazendo numa bandeja as mais gostosas guloseimas para o depois do amor, e do melhor vinho da adega palaciana. O criado é Nuno, Sanxo desconfia, tem alguma coisa errada, mas é Nuno mesmo, fisionomia e pose grave de um profissional criado.  Devora as guloseimas, bebe vorazmente o vinho, atira-se novamente ao seio de Luisa que se lhe oferece languidamente, em frenética sofreguidão. Goza como um desvairado. Adormece nos braços de Luisa. Sonha por fim que terríveis dores de estômago levam-no a vômitos  que lhe põem boca  a fora as tripas com tudo o que havia ingerido. Tenta se levantar, Luisa! Nuno! onde estão vocês? grita desesperado, não consegue, tem a sensação que as guloseimas e vinho estavam envenenadas, sente-se morrer, sufoca-se, o sangue queima-lhe as veias, a cabeça gira como um carrossel. Vê por fim, Nuno e Luisa, ao pé de seu leito, assistirem passivos a sua agonia, rindo-se cúmplices, como se se deleitassem com seu sofrimento mortal...                                           - Assassinos! Traidores! falsos amigos! encontrá-los-ei nos infernos! sentiu-se morrer... A figura do velho padre pregando seu sermão lhe invade a mente ensandecida e culpada. Socorro, me acuda, padre mestre, por caridade, tende piedade de minha alma pecadora... Sanxo, sanxo, grita-lhe Nuno, sacudindo violentamente o  amigo, acorde, em nome de deus... Sanxo desperta mais morto que vivo, todo sujo de vômito.
                                                - Nuno, nuno, que aconteceu, onde estou, por quem sou, dizei-me, porque estou tão assim tão mal, debate-se em atroz agonia.                                                               - Tivestes pesadelos, amigo, comeste e bebeste demais, talvez...                                    - Sim, por certo, talvez, agora me lembro, foi isso, devo ter comido e bebido demais, santo deus, que dor de cabeça, que mal estar                                         
                                                   A índia com quem passara a noite traz-lhe uma cabaça com  chá de ervas, ingere a beberagem, sente alívio quase que imediato. Levam-lhe pra uma  rede, Sanxo está em choque. Nuno aparece na oca em que se recolhera.                                               - Sanxo. Tem um grupo de índios aí fora. Uns vinte índios. Todos parecidíssimos comigo e  contigo. Dizem que são nossos netos. Adivinha de  quem é filho o que os trouxe até aqui?    
                                                         - Essa é fácil...
                                                         - Neuzim da Moita...Neuzim e Joana dos Anjos tinham ido para Pernambuco com a idéia de se reencontrarem com eles por lá ou pela Bahia.                                            
                                                       - Ele mesmo. Lembra daquelas índias com quem ficamos século passado? Os índios são o resultado daquela farra.                                                                 - Querem alguma coisa especial de nós?                                               - Apenas nos conhecer.                                             -                Que tem Neuzim da Moita com eles?
                                                      - Nada especial, além de terem pelo menos dez desses índios como filho...apenas ajudou-os a nos achar. Em troca ganhou  de uns instrumentos de sopro que ele agora sabe tocar...
                                                      - Relaxa, deixa Neuzim na dele, vem conhecer tua descendência. Sanxo levanta a contragosto, mal põe a cara fora de oca é cercado pelos índios parecidos com ele e Nuno.       
                                        - Viemos conhecer nossos avós.                                             
                                         - Nossos avós?  
                                              - Sim, vocês. Que estória mais sem sentido.                                  
                                               Os netos deles eram mais velhos que eles. Velho padre e seus colegas de batina assistiam a tudo com um risinho cúpido no canto da boca. Não entendiam totalmente a cena, mas imaginavam o que não entendiam. Velho padre se aproxima deles.        
                                                - Terão que reparar o mal-feito do passado, filhos, se querem se redimir perante deus. Terão que batizar seus descendentes, como bons cristãos.                                  
                                                 Sanxo olhava pro velho padre com indisfarçável enfado.                                                 - Que ressaca, santo deus, água, quero água,  estou com as vísceras em brasa! Alguém lhe trouxe água.   
                                                  - Tudo bem, padre mestre, façamos sua vontade, seja tudo conforme sua intenção de tornar essa indiada que se diz netos daquelas índias com quem ficamos tempos atrás, bons cristãos tementes a deus e a santa madre.
                                                - Sim, meus filhos, ainda bem que concordais, não vejo melhor jeito de reparar o resultado dessa ato impensado de outrora. Vejo que são jovens bons cristãos zelosos da importância dos sacramentos para si e sua descendência.  
                                                          Armou-se o circo, os padres se paramentaram, velho padre comandou a cerimônia, aquelas almas fruto do pecado se tornam cristãs, amém.                                                
                                                        A comitiva dos padres prosseguiu sua caminhada à frente o velho padre. Na altura da região que é hoje a província do Piagohy, divide-se em três: uns padres vão até à serra da Ibiapaba, outros vão no rumo de Pernambuco, velho padre segue com Nuno e Sancho para a cidade de Salvador, na Bahia. Os rapazes, lá  encontram seus companheiros, Neuzim e Joana, ajudados por um poeta conhecido como Boca dos Infernos, que conheceram na casa do irmão do padre, onde estavam hospedados. Boca dos Infernos era um poeta mais ou menos aceito como tal pela sociedade bahiana e conhecido por sua poesia ora satírica, ora profana, quase pornográfica, ora carregada de religiosidade. Se encantou à primeira vista com aqueles rapazes alegres, divertidos e talentosos em suas artes e malasartes. Claro que se apaixonou por Joana e lhe dedicou alguns versos fascinado por sua beleza de inocente pecadora redimida. Passou a andar pelas tavernas e bares, botecos, vielas e ruas da cidade, empunhando viola que logo ensinou a Nuno e a troupe passou a lhe acompanhar em verdadeiros saraus que se tornaram diários, onde declamava ou cantava seus versos:
À SUA MULHER ANTES DE CASAR
Discreta, e formosíssima Maria,
Enquanto estamos vendo a qualquer hora
Em tuas faces a rosada Aurora,
Em teus olhos, e boca o Sol, e o dia:Enquanto com gentil descortesia
O ar, que fresco Adônis te namora,
Te espalha a rica trança voadora,
Quando vem passear-te pela fria:Goza, goza da flor da mocidade,
Que o tempo trota a toda ligeireza,
E imprime em toda a flor sua pisada.Oh, não aguardes, que a madura idade
Te converta em flor, essa beleza
Em terra, em cinza, em pó, em sobra, em nada.
BUSCANDO O CRISTO CRUCIFICADO UM PECADOR COM VERDADEIRO ARREPENDIMENTO
A vós correndo vou, braços sagrados,
Nessa cruz sacrossanta descobertos,
Que, para receber-me, estais abertos,
E, por não castigar-me, estais cravados.A vós, divinos olhos, eclipsados
De tanto sangue e lágrimas cobertos,
Pois, para perdoar-me, estais despertos,
E, por não condenar-me, estais fechados.A vós, pregados pés, por não deixar-me,
A vós, sangue vertido, para ungir-me,
A vós, cabeça baixa, pra chamar-me.A vós, lado patente, quero unir-me,
A vós, cravos preciosos, quero atar-me,
Para ficar unido, atado e firme.

DEFINE A SUA CIDADE
De dois ff se compõe
esta cidade a meu ver:
um furtar, outro foder.
Recopilou-se o direito,
e quem o recopilou
com dous ff o explicou
por estar feito, e bem feito:
por bem digesto, e colheito
só com dous ff o expõe,
e assim quem os olhos põe
no trato, que aqui se encerra,
há de dizer que esta terra
de dous ff se compõe.
Se de dous ff composta
está a nossa Bahia,
errada a ortografia,
a grande dano está posta:
eu quero fazer aposta
e quero um tostão perder,
que isso a há de perverter,
se o furtar e o foder bem
não são os ff que tem
esta cidade ao meu ver.
Provo a conjetura já,
prontamente como um brinco:
Bahia tem letras cinco
que são B-A-H-I-A:
logo ninguém me dirá
que dous ff chega a ter,
pois nenhum contém sequer,
salvo se em boa verdade
são os ff da cidade
um furtar, outro foder.
                                             Nesta época Salvador vivia sob a tensão de um crime acontecido, que envolvia as facções políticas que dividiam o poder na capital da província. 
                                               Francisco Teles de Menezes, secretário do governador é emboscado por 8 homens encapuzados, tem sua mão arrancada do braço e é morto por Antônio de Brito. O motivo se deu por perseguição política - estarão envolvidos no crime: Ravasco, irmão do Padre Vieira e Moura Rolim, primo de Gregório. Os homens fogem para o Colégio dos Jesuítas, mas o governador da Bahia - Antônio de Sousa Menezes, O Braço de Prata, será avisado e começará uma terrível perseguição contra todos envolvidos.
                                              Antônio de Brito será torturado e delatará os envolvidos - Viera será perseguido - mas por representar a igreja e o poder papal, o governador releva, mas quer o irmão Bernardo Ravasco preso e destituído do cargo de Secretário do Estado. Ao tentar proteger a filha Bernardina Ravasco, Gregório conhece Maria Berco, que será presa ao saber que ela possuía a mão e o anel do Alcaide (o anel será penhorado). São confiscados de Bernardo documentos escritos e os poemas de Gregório. Bernardina é presa para pressionar Ravasco a se entregar.
                                             Rocha Pita é nomeado desembargador para investigar a morte do Alcaide. Palma, também desembargador, nega a vingança planejada pelo governador e por falta de provas, exige a soltura dos envolvidos mas, para soltar Maria Berco, Gregório teria que pagar uma fiança de 600 mil réis.
                                             Bernardino é libertado e expatriado. O governador é destituído do cardo e o Marquês de Minas é nomeado para substituí-lo, restituir o cargo de secretário a Bernardo Ravasco e se apresentar imediatamente ao Rei de Portugal. Mesmo assim sai do Brasil com muitas riquezas. O próximo governador, Antônio Luís da Câmara Coutinho, também será satirizado pelo poeta Gregório que terá sua morte encomendada, mas só o próximo governador, João de Lancastre, é que conseguirá prendê-lo e expatriá-lo para a Angola, volta mais tarde para Pernambuco, mas será proibido de escrever suas sátiras. Volta a advogar e morre em 1695, aos 59 anos.
                                             Padre Vieira lutará por justiça social através de seus sermões, morre cego e surdo em 1697. Bernardo Ravasco recebe sentença favorável ao crime contra o Alcaide e é substituído pelo filho, Gonçalo Ravasco. Maria Berco ficará rica mas deformada, rejeita pedidos de casamento à espera do poeta Gregório, que se casa com uma negra viúva, Maria de Povos, mas não se afasta da vida de devassidão pelos bordéis da cidade. "...se eu tiver que morrer, seja por aqui mesmo. E valha-me Deus, que não seja pela boca de uma garrucha, mas pela cona de uma mulher." A cidade da Bahia cresceu, modificou-se o cenário de prazer e pecado da cidade onde viveu o poeta Boca dos Infernos.
                                           Por cruel ironia do destino o homem que foi o principal assessor do rei de Portugal, que encantou platéias em todo mundo com sua oratória, que enfrentou a Inquisição e andava nos salões da diplomacia europeia com a mesma naturalidade que enfrentava a pé caminhos e caminhos pelas matas do nordeste, teve como sua última batalha uma futrica paroquial da qual saiu com a mesma altivez de sempre. 

Nota do autor: A última parte do capitulo poderá ser melhorada com a leitura do romance Boca do Inferno, de Ana Maria Miranda... fico devendo isso aos leitores..


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